Orgulho gaúcho: leia a íntegra do discurso de Cléa Carpi, Medalha Rui Barbosa
08/12/2017 17:40
A conselheira federal e ex-presidente da OAB/RS, Cléa Carpi, agraciada com a Medalha Rui Barbosa, a mais alta comenda da advocacia brasileira, é a primeira advogada, e gaúcha, a ser homenageada com a Medalha em 86 anos. Ela recebeu a premiação na quinta-feira, 30 de novembro, durante o encerramento da XXIII Conferência Nacional da Advocacia Brasileira, que ocorreu entre os dias 27 e 30 no Centro de Eventos Anhembi em São Paulo.
Cléa Carpi não apenas obteve a mais importante comenda da advocacia, mas tornou-se um marco na história da OAB ao tornar-se a primeira mulher a adentrar o restrito panteão. A outorga da Medalha Rui Barbosa foi parte da cerimônia de encerramento da XXIII Conferência Nacional da Advocacia, realizada em São Paulo. Segundo dados consolidados, essa edição da conferência foi marcada como o maior evento jurídico do mundo, o que torna a homenagem a Cléa ainda mais especial e simbólica.
O presidente da OAB/RS, Ricardo Breier, ressaltou: "muito nos orgulha que a primeira mulher a receber esta homenagem seja Cléa Carpi da Rocha, que atua há mais de 30 anos na área do Direito. Desde a sua juventude, ela caminhou para um mundo justo e fraterno. Foi a primeira mulher a assumir a Presidência da OAB/Rio Grande do Sul e, por dois mandatos, atuou como Conselheira Federal, representando o nosso Estado", registrou.
Leia abaixo a íntegra do discurso de Cléa Carpi, Medalha Rui Barbosa:
Sinto-me profundamente honrada e feliz em receber a Medalha Rui Barbosa, que evoca o Patrono da Advocacia Brasileira, estadista, exemplo de ética profissional e talento jurídico, cuja figura, no dizer de Paulo Bonavides, avulta sempre agigantada em um país de tão reduzida cultura política como o nosso, necessitado de paradigmas e referências valorativas.
Bem sei o que representa a responsabilidade de uma advogada receber pela primeira vez tão destacada honraria. E o faço partilhando esta homenagem com as valorosas advogadas brasileiras, e com vocês que aqui se encontram, como se todas tivessem realmente esta Medalha em seu peito.
Na voz de um poeta agradecer é homenagear a vida.
Assim, renovo meu agradecimento aos membros da Diretoria do Conselho Federal, Presidente Claudio Lamachia, Vice-Presidente Luís Cláudio da Silva Chaves, Secretário-Geral Felipe Sarmento Cordeiro, Secretário-Geral Adjunto Ibaneis Rocha Barros Junior, Diretor-Tesoureiro Antonio Oneildo Ferreira; às Conselheiras e aos Conselheiros que me escolheram para receber a mais alta Comenda da advocacia brasileira, ao apoio de ex-Presidentes nacionais, de muitos dirigentes de Subseções, dos Presidentes de Seccionais, e o faço, permitam-me, nas pessoas do Presidente Marcos da Costa, nosso anfitrião, e do Presidente Ricardo Breier da minha OAB gaúcha.
Destaco, também, minha gratidão à Comissão Nacional da Mulher Advogada, em especial na pessoa da sua Presidente, Conselheira Federal Eduarda Mourão, da Vice-Presidente Helena Delamonica, e Vice-Presidente da OAB/MG, e da Secretária do Colegiado, advogada Florany Mota, bem como às Comissões Estaduais e às advogadas, as maravilhosas advogadas que firmaram minha indicação por ocasião da memorável II Conferência Nacional da Mulher Advogada realizada em Belo Horizonte, em 2016, objetivando que, no Ano da Mulher Advogada, instituído pelo Conselho Federal, fosse agraciada para receber a Medalha Rui Barbosa.
Bravas mulheres, nas quais, identifico o espírito combativo de Anita Garibaldi, a heroína dos dois mundos, quando disse: “Não tenha medo de viver, de correr atrás dos sonhos. Tenha medo de ficar parada”.
E neste plenário a brava advogada Herilda Balduino de Souza, espírito combativo em defesa dos Direitos Humanos.
Neste momento tão significativo para mim, permitam-me, queridas e queridos colegas, evocar uma pessoa singular que aqui chegou, impregnado pelas ideias libertárias que sacudiam o Continente Europeu, Lêonida Carpi, meu pai. Sua inquietude, sua rebeldia, sua crença, sua fé encontraram nesta terra, que tanto amou, o veio de sua permanente luta para mudar a injusta condição humana, numa visão universal do bem comum. Teve ao seu lado uma mulher que o acompanhou com a sabedoria da bondade, sempre serena e firme nos momentos mais duros da ditadura militar, Elisa Margarida, minha mãe. De ambos recebi os valores de vida plena para todos, da liberdade, da dignidade, da fidelidade, princípios que cimentam minha vida e me conduziram até aqui.
E a lembrança doce e perene de meu amado menino Francisco Leônida.
E meu afeto à minha linda e aguerrida neta do coração, Giovanna, parceira de vida e advogada em formação.
Esta nossa Conferência Nacional tem como núcleo a “Defesa dos Direitos Fundamentais, Pilares da Democracia, Conquistas da Cidadania”.
Nas palavras do venerável Papa João XXIII, “quando numa pessoa surge a consciência dos próprios direitos, nela nascerá forçosamente a consciência do dever: no titular de direitos, o dever de reclamar esses direitos, como expressão de sua dignidade; nos demais, o dever de reconhecer e respeitar tais direitos “ (Encíclica Paz na Terra, Sinal dos tempos, Edição Paulinas, 2004, p.23).
Diante desses sábios ensinamentos, cumpre indagar: na Ordem dos Advogados do Brasil estão as advogadas inseridas no campo do exercício do poder, nas instâncias de decisão, como expressão de sua dignidade?
Considerando o contingente que equivale a quase metade do total dos inscritos na OAB, qual é o universo da representação feminina no Conselho Federal e na sua Diretoria, nas 27 Seccionais, nos Conselhos Estaduais, nas Subseções e seus Conselhos, nas suas diversas Comissões?
Apesar dos esforços que em nossa entidade seus dirigentes e membros vêm fazendo, os dados indicam a lentidão do reconhecimento da extraordinária capacidade e do dedicado trabalho profissional da advogada, e, portanto, merecem nossa atenção.
Nos 87 anos de existência da Ordem, em apenas três oportunidades tivemos a presença feminina na Diretoria do Conselho Federal. Duas gaúchas. A primeira, Marina Lima de Magalhães, como Secretária-Geral Adjunta na Gestão de Ernando Uchoa Lima. A segunda, tive eu a alegria de integrar a Diretoria do Conselho Federal como Secretária-Geral, sob a liderança do operoso Presidente Cezar Britto, quando conduziu a Entidade entre 2007 e 2010. Valho-me deste feliz momento, Presidente Cézar, para expressar a V.Exa. meu agradecimento e também minha homenagem por sua visão republicana e atenta na defesa das prerrogativas profissionais e da cidadania, ambas indissolúveis, visão e defesa, retratadas tão bem na Conferência Nacional de 2008, promovida em sua Gestão, com o eixo “Estado Democrático versus Estado Policial”. A terceira integrante da Diretoria, a estimada Conselheira Federal paulista Márcia Machado Melaré, filha do sempre presidente Rubens Approbato Machado, a qual ocupou o cargo de Secretária-Geral Adjunta na presidência de Ophir Cavalcante Junior.
Também nesse largo interregno, somente 10 advogadas foram eleitas e exerceram a Presidência da OAB nos Estados. Hoje apenas uma detém o cargo de presidente, a destacada colega Fernanda Marinela, de Alagoas. Por sua vez, no Conselho Federal, eleitas apenas 09 Conselheiras titulares e 12 suplentes.
A inserção, a partir do pleito de 2015, da obrigatoriedade de candidaturas com o mínimo de 30% e o máximo de 70% de cada sexo para registro de chapas, constituiu um começo.
Todavia, promissor olhar consolida-se atualmente na OAB, com a criação do Plano Nacional de Valorização da Mulher Advogada, cuja coordenação e execução estão a cargo da Comissão Nacional da Mulher Advogada, em conjunto com as Seccionais, as Caixas de Assistência dos Advogados e as Subseções, em todo o território nacional. E agora fortalecido com o grande Movimento Mais Mulheres na OAB.
A evolução, como vemos, tem sido lenta, mas estamos a caminho, pois a marcha é coletiva, e exige a presença atenta e constante de todos nós, advogadas e advogados. A final, como disse certa vez Bento Gonçalves, herói da Revolução Farroupilha: “A causa que defendemos não é só nossa, ela é igualmente a causa de todo o Brasil”.
Sempre entendi que a vida é feita de escolhas, sempre escolhas, sendo que a importância delas reside na fidelidade.
E tenho como uma das fidelidades de minha alma a OAB, por tudo o que tem feito em relação à justiça social e aos direitos humanos, e em defesa das prerrogativas do advogado que são prerrogativas da cidadania, visando à realização da Justiça, essenciais ao Estado Democrático de Direito, como dispõe o mandamento do art.44 do nosso Estatuto.
Essa dimensão humana que tem o exercício da advocacia, essa voz de liberdade, me fascina e me apaixona.
Não é por outro motivo que Calamandrei aponta ser o advogado dotado de superantenas de justiça. Essa sensibilidade simbolizada pelas antenas é requisito indispensável para o exercício da profissão (Elogio dei giudici scritto da un avvocato, Lisboa, 1957, p.57).
A OAB está na gênese do Estado constitucional vigente hoje no Brasil. Esteve na vanguarda das lutas cívicas que propiciaram a redemocratização, a anistia, o fim da censura, a liberdade de plena organização partidária, o restabelecimento de eleições diretas em todos os níveis e, por fim, a Assembleia Nacional Constituinte, que promulgou a Constituição da República de 1988, consolidando todas essas conquistas.
A Carta Cidadã foi fruto de longa e penosa luta da cidadania brasileira, que teve seu ponto de inflexão com o início do chamado processo de distensão política, na esteira da revogação do brutal AI-5, dos demais Atos Institucionais e dos outros instrumentos de exceção, avanços que permitiram, no governo militar seguinte, a anistia, as eleições diretas para governador e o restabelecimento do pluripartidarismo.
A OAB sempre sustentou que a redemocratização não poderia restringir-se à recuperação da liberdade, mas cobrava também a presença dos princípios inerentes à igualdade social. E essa posição inabalável pressionou os constituintes e abriu as portas da Assembleia às emendas populares.
Voltando no tempo, fato que reputo como um dos mais representativos da atuação da OAB, confirmando seu papel histórico de sentinela da sociedade civil e interlocutora fundamental no panorama político brasileiro, foi o restabelecimento do habeas corpus, resultante da firme e destemida interlocução do Presidente Raymundo Faoro com o General Ernesto Geisel, em 1978.
O contexto atual é muito diferente daquele de 1978, há quarenta anos, quando se realizou a histórica VII Conferência Nacional de Curitiba tendo como bandeira o “Estado de Direito”, marcando a extraordinária luta pela restauração da democracia, numa das mais memoráveis demonstrações cívicas das advogadas e dos advogados, no momento em que no Brasil imperava o regime militar, e sob o pálio da Emenda Constitucional nº 1, de 1969.
E hoje, neste grave momento de instabilidade política, como bem alerta nosso Presidente Claudio Lamachia, o País, mais do que nunca, necessita de sensatez e serenidade. Os males da democracia só encontram remédio dentro da ordem jurídica e do Estado Democrático de Direito, observando-se o devido processo legal, a plena defesa e a presunção de inocência, ditames constitucionais que estão não só sendo ameaçados, mas atingidos no nosso cotidiano.
A OAB tem plena ciência de que substituir mandatários não é suficiente. É necessária uma profunda e abrangente reforma política, pois, como afirma Lamachia, a que foi aprovada no Congresso só reforça a grande distância entre a população e a classe política (Zero Hora, 02.11.2017, p.16).
A relevância da advocacia na administração da justiça acha-se proclamada na Constituição brasileira em seu art. 133: “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.
E esse fundamental preceito decorre da importância atribuída à função da advogada e do advogado e à responsabilidade de todos os que exercem esse ministério.
A norma, como observa o ministro Celso de Mello, “firma o princípio da essencialidade da advocacia e institui a garantia da inviolabilidade pessoal do advogado”.
Nesse sentido, marco importante foi a aprovação da Lei nº 11.767/2008, que assegura ao advogado a inviolabilidade de seu escritório e do local de trabalho, bem como de todos os instrumentos necessários ao seu ofício. Um avanço na luta contra a presença de um Estado Policial e ainda vivo em nossos dias, com seus diversos tentáculos, incompatível com o Estado Democrático de Direito estabelecido pela Carta Cidadã. E deve completar-se com a tipificação penal da violação de direitos ou de prerrogativas do advogado, a fim de assegurar o efetivo exercício da advocacia.
A consciência do novo prosseguir da advogada e do advogado deve ser motivo de uma profunda revisão que possibilite liberar toda a criatividade e o esforço para que o preceito constitucional do artigo 133 seja eficazmente exercitado sim.
Indago: como dar plena efetividade a esse mandamento constitucional quando perduram interceptações telefônicas que resultam na quebra do sigilo profissional, conduções coercitivas feitas em desacordo com a lei, funcionamento do Judiciário em meio expediente, ausência de magistrados nas comarcas e nos tribunais, morosidade da prestação jurisdicional, entre outras tantas incidências.
Tantos são os problemas, tantas as dificuldades, tantos os obstáculos que temos e devemos enfrentar e solucionar. Esse é um desafio constante. Mas, por certo, só conseguiremos vencer com uma Ordem forte, com a firmeza de seus dirigentes e de seus membros, como está sendo realizado vigorosamente por V.Exa., Presidente Lamachia.
A Caravana das Prerrogativas, idealizada por V.Exa. ainda quando Presidente da OAB do Rio Grane do Sul, e hoje sob sua liderança, contando com a dedicação da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas e Valorização da Advocacia e da Procuradoria Nacional de Defesa das Prerrogativas –sob o comando dos Conselheiros Federais Jarbas Vasconcelos, Cássio Telles e Charles Dias, constitui um instrumento exemplar de aproximação da Ordem à realidade da vida dos advogados em nosso País. Seus exemplos são ações efetivas em defesa das prerrogativas da profissão, contra os abusos cometidos às advogadas e aos advogados e no resguardo do Estado Democrático de Direito.
Que administração da Justiça queremos?
Do que a nação e seu povo precisam?
Ao recebermos a Carteira profissional, caríssimas colegas e caríssimos colegas, pronunciamos o nosso juramento, prestado perante o Conselho Seccional, compromisso indelegável, por sua natureza solene e personalíssima, que é “o de exercer a advocacia com dignidade e independência, observar a ética, os deveres e prerrogativas profissionais e defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça social, a rápida administração da justiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”.
E diante dessa realidade que nos rodeia, nos inquieta, nos preocupa, nos atinge, nos mobiliza, abre-se para nós, advogadas e advogados, uma nova perspectiva no nosso ofício, no nosso compromisso com a sociedade, na nossa luta pelo respeito humano, na nossa atenção contínua, não só quanto à aplicação da lei, mas quanto à efetiva distribuição da justiça.
Os problemas que afligem o quotidiano estão ligados à visão global de uma sociedade e à necessidade de transformá-la para atender ao bem comum, sem retrocessos como foi a reforma trabalhista e o que se pretende fazer com a mutilação da previdência social, todas tornando letra morta a parte cidadã da Constituição Federal.
Por isso, nossa mobilização para a plena concretização da democracia procura garantir não somente um convívio social, mas um convívio social justo, com o engajamento da sociedade em defesa de seus valores fundamentais.
O Estado Constitucional inaugurado em 88, que a OAB ajudou a conceber, é uma construção contínua, que abarca várias gerações.
Nosso desafio – não apenas da OAB, mas de todos os setores organizados da sociedade civil – é fazer com que o Brasil comece a dar conteúdo a estas duas palavras vitais para a preservação da dignidade humana: justiça e cidadania.
A promoção da justiça não nos deixa envelhecer, pois sempre impõe a construção de uma sociedade nova. Traz a confrontação positiva das tendências sociais a fim de possibilitar as mudanças necessárias à ordem jurídica. Porém, só a justiça legitima o Direito e não se conforma com a aparência de legalidade. A Justiça, assim, atualiza o Direito e ao mesmo tempo constitui o elo com o futuro. Ela não é tarefa solitária, é uma tarefa coletiva, de todos nós.
Por sua vez, a cidadania, nas palavras de Olinto Pegoraro, “como conquista dos atores sociais, é o resultado da consciência política e da participação efetiva na luta para a construção de estruturas sociais justas”. Esse esforço coletivo, diz ele, concretiza-se na Constituição que é, de certo modo, um tratado de Ética e Justiça que os cidadãos e as cidadãs escrevem, assinam e cumprem no seio de uma comunidade política (Ética e Justiça, p.106. Editora Vozes, 9ª Edição).
O sociólogo Edgar Morin, destaca que “podemos não chegar ao melhor dos mundos, mas a um mundo melhor”.
Sem dúvida, no mundo atual que nos rodeia, outro mundo justo é possível e cabe a nós torná-lo possível.
Como reflexão acerca da nossa caminhada, evoco as extraordinárias e doces palavras de Eduardo Galeano para termos sempre aninhada em nossos corações a esperança, a beleza da esperança, de um mundo melhor:
Diz Galeano: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que nunca deixe de caminhar”.
Advogadas e advogados, nunca deixemos de sonhar e caminhar. Que Deus nos guarde, pois somos sua imagem e semelhança (Mt 23,1-12).
Obrigada.
08/12/2017 17:40